Robôs e IA prometem, enfim, tornar a reciclagem de lixo eletrônico uma operação lucrativa
Quantos celulares você já teve? Quantos computadores de mesa ou laptops já usou? Desse total, tenha certeza de que pelo menos 70% deles ainda estão por aí, possivelmente liberando no ambiente substâncias tóxicas como mercúrio, chumbo, cádmio e arsênio, contaminantes do solo e da água.
Apenas 22,3% dos resíduos eletroeletrônicos gerados no mundo são coletados de forma adequada, segundo o Global E-waste Monitor 2024, da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2022, foram produzidas cerca de 62 milhões de toneladas desse tipo de resíduo em todo o planeta.
O Brasil lidera essa produção na América do Sul, com 2,4 milhões de toneladas, de acordo com a Associação Brasileira de Reciclagem de Eletroeletrônicos e Eletrodomésticos (Abree). Além do prejuízo ambiental, isso tudo representa a perda de aproximadamente US$ 62 bilhões em recursos naturais.
A falta de sucesso da reciclagem de eletrônicos se deve a vários motivos, entre eles a falta de conscientização do consumidor e de infraestrutura de coleta e o alto custo do processo de desmontagem. Ou seja, enquanto a indústria produz em larga escala, a desmontagem e o reaproveitamento de partes desse lixo é feita à mão, num ritmo quase artesanal.
A boa notícia é que a inteligência artificial jogou uma nova luz sobre a possibilidade de automatizar o processo de reciclagem. “Em 2019, participamos de um projeto financiado pela União Europeia. Tentamos automatizar esse processo com robôs. Mas não deu certo. O robô era configurado para desmontar apenas certos tipos de aparelhos, mas não conseguia fazer com vários outros”, conta o doutor em engenharia e especialista em robótica José Francisco Saenz, do Instituto Fraunhofer para Operação e Automação de Fábricas, em Magdeburg, na Alemanha.
“Agora podemos ensinar os robôs a desmontar vários tipos de aparelhos, e isso ajudaria a fazer a reciclagem ser mais rápida, mais rentável e o aproveitamento de materiais seria bem maior, sem a possibilidade de contaminar quem opera a desmontagem, como acontece hoje”, diz ele.
Saenz mergulhou nesse novo projeto — ainda sem recursos de investidores — há dois anos e meio. Na Dinamarca, a equipe do Instituto Tecnológico Dinamarquês, Mikkel Labori Olsen, consultor em tecnologia robótica do instituto e pesquisador do projeto RoboSAPIENS, também vem se dedicando à mesma missão, há um ano e meio. Também ainda sem investimentos privados.
Os dois projetos são promissores e usam, basicamente, um braço robótico, uma caixa de ferramentas dedicada e uma câmera. No caso dinamarquês, o robô é treinado para substituir telas de laptop — uma tarefa manual e demorada para a qual é difícil conseguir mão de obra humana especializada.
Na Alemanha, o ponto de partida é um robô assistido por IA que desmonta computadores de mesa antigos. “Mas ambos os sistemas, uma vez desenvolvidos, serão capazes de desmontar vários tipos de celulares, laptops, eletrônicos de linha branca e até baterias de carros movidos a energia”, espera Olsen.
As vantagens são claras: mais velocidade e segurança no desmonte e maior aproveitamento dos materiais — o que ajudaria a indústria da reciclagem a ser mais lucrativa e aproveitar de maneira efetiva os US$ 62 bilhões em recursos naturais descartados como lixo eletrônico, calculados pela ONU.
Para se ter ideia do desperdício, muitos dos materiais que estão sendo jogados fora são os chamados ímãs de terras raras, que se tornaram fontes de cobiça e disputas globais. Prata e outros metais preciosos podem ser extraídos de placas de circuito, juntamente com cobalto, lítio, manganês e níquel de baterias.
Uma tonelada de smartphones descartados rende mais ouro do que uma tonelada de minério bruto, de onde o metal é extraído, de acordo com a empresa britânica Astute Groupe, especializada em aquisição, distribuição e gestão da cadeia de suprimentos de componentes eletrônicos internacionais.
Bem pouco disso é aproveitado até agora. Quando um laptop, por exemplo, é reformado para ser vendido como aparelho de segunda mão, o lucro é de cerca de € 200, segundo Olsen. O valor do material de um laptop reciclado obtido pela trituração de todo o dispositivo — que é o processo mais adotado atualmente — é de apenas cerca de € 10.
Percalços
Mas até a inteligência artificial enfrenta problemas. O pior é a variedade de diferentes aparelhos que os robôs precisam aprender a desmontar. “Para ter algo que seja escalável, o robô deve ser sensível, precisa ter câmeras e ser inteligente para se adaptar aos modelos, sem que um engenheiro precise programar a desmontagem aparelho por aparelho. As câmeras devem ser capazes de detectar as coisas por si”, diz Saenz.
Ele calcula que isso só será possível dentro de quatro a cinco anos — simplesmente porque a indústria dificulta o processo. Os cientistas, por exemplo, ensinam o robô a desparafusar um aparelho. Desenvolvem um braço para segurar e outro com a capacidade de manipular uma chave de fenda ou garras capacitadas para desrosquear.
“À medida que a tecnologia se torna mais compacta, os fabricantes estão mudando radicalmente a forma como constroem seus dispositivos. Muitas vezes, eles colam os componentes em vez de parafusar, dificultando muito a desmontagem e a reciclagem sem danificar os componentes”, afirma Olsen.
Algumas empresas, porém, estão começando a desenhar seus produtos de uma forma mais fácil de desmontá-los quando chegar a hora da reciclagem. É o caso da Fairphone, fabricante holandesa de eletrônicos que projeta e produz smartphones e fones de ouvido que minimizam o impacto ético e ambiental, com uso de materiais reciclados, sistemas de comércio justo e módulos que permitem o conserto dos dispositivos facilmente, se necessário. Por enquanto, os Fairphones são vendidos apenas na Europa.
“Tirando essa exceção, a maioria é feita para ser mais fácil de produzir e mais lucrativa, sem foco em reparação ou impacto ambiental”, diz Olsen.
Mesmo assim, algumas grandes indústrias também pesquisam robôs recicladores, já que também não conseguem mais ter acesso aos materiais raros que precisam cada vez mais. A Apple, por exemplo, tem um robô chamado Daisy que desmonta 20 versões do iPhone — ao todo, desde 2007, foram lançadas 24 versões.
A Microsoft está desenvolvendo um robô para desmontar discos rígidos de computadores. A sueco-suíça ABB, de engenharia elétrica, trabalha com a Molg, uma recicladora americana, no desenvolvimento de linhas robóticas para desmontar material de grandes data centers.
Pressão para reciclar
No entanto, especialmente na Europa, a regulação está começando a apertar a indústria que produz eletrônicos. “Temos pressão vinda de todos os lados. A UE não quer mais enviar seu ‘e-waste’ (lixo eletrônico) para a África, Ásia”, afirma Saenz.
Por isso, outra saída que também vem sendo “azeitada” por robôs com IA é a reforma de aparelhos para serem reutilizados. As linhas robotizadas também estão sendo treinadas para que todos os dados armazenados em laptops, por exemplo, sejam deletados corretamente.
Apesar desses desafios, Olsen e Saenz estão otimistas. “Há uma iniciativa interessante que está se formando na França e que pode ajudar muito se adotada em toda a Europa: um selo que mostra o índice de facilidade para reparar ou reciclar o produto depois da vida útil”, diz o dinamarquês.
Tudo isso pode colaborar para que os preços desses robôs também sejam acessíveis. Hoje, um braço robótico comum custa bem caro, segundo Olsen: quase meio milhão de coroas dinamarquesas, ou cerca de R$ 419,2 mil. Por isso, na equipe que trabalha com Saenz na Alemanha também há especialistas em modelos de negócios. “Não queremos só ser capazes de enviar alguém para a Lua. Queremos que a viagem seja acessível para todo mundo”, compara ele.