MP do setor elétrico provoca tensão entre governo e indústria
A Medida Provisória nº 1.300/2025, publicada em maio pelo governo federal, provocou forte reação do setor produtivo ao prever mudanças que podem elevar os custos da energia elétrica para a indústria. Com o objetivo de modernizar o mercado, ampliar a liberdade de escolha e promover justiça tarifária, a proposta prevê uma reestruturação nos subsídios do setor elétrico, retirando benefícios da indústria para financiar a ampliação da Tarifa Social.
O novo desenho dos subsídios, porém, não tem impacto neutro. O plano é realocar R$ 3,6 bilhões anuais da CDE (Conta de Desenvolvimento Energético, fundo de subsídio bancado pelos consumidores via taxa) para financiar a nova Tarifa Social de Energia Elétrica, que promete gratuidade para quem consome até 80 kWh por mês e deve contemplar 21 milhões de famílias de baixa renda.
O subsídio às fontes incentivadas é o mais oneroso da CDE, enquanto a Tarifa Social figura como o quarto item de maior peso, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Por isso, o governo quer redistribuir os encargos. Uma das propostas mais sensíveis é o fim gradual dos subsídios nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição de energia (Tust e Tusd) para novos contratos de energia incentivada, conhecidos como “desconto no fio”.
Em 2024, o mecanismo custou mais de R$ 13 bilhões, de um total de R$ 48 bilhões da CDE, e beneficia a grande indústria, mas pesa no bolso dos demais consumidores, especialmente residenciais e pequenos comércios que acabam arcando com maior peso relativo.
Anderson Baranov, CEO da Norsk Hydro Brasil, afirma que, por meio da Abrace, associação que representa os grandes consumidores de energia, conseguiu articular emendas à MP. Segundo o executivo, a preocupação é evitar que a indústria seja onerada, comprometendo ainda mais a competitividade do setor produtivo.
A MP tem vigência até setembro e está sob relatoria do deputado Fernando Coelho Filho (União-PE), ex-ministro de Minas e Energia no governo Michel Temer. O texto recebeu quase 600 emendas, muitas com ajustes ao conteúdo original e outras com temas alheios à proposta inicial, os chamados “jabutis”.
“Só o fato de ter 600 emendas deixa claro que o assunto como um todo não está pacificado. O que está pacificado é a tarifa social. Todo mundo entende e concorda. A partir daí, quem paga a conta?”, questiona Baranov.
O ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana avalia que a MP avança ao reduzir distorções tarifárias, mas ainda está longe de promover um reequilíbrio estrutural no setor. Ele lembra que a própria agência reguladora já havia proposto iniciativa de ampliar a tarifa social no passado e destaca que o benefício previsto na MP representa cerca de um quarto do custo da geração distribuída, subsídio cruzado que não foi enfrentado na MP e continua ampliando o peso da conta para os pequenos consumidores.
“Para a MP ser equilibrada, os pequenos consumidores que pagam por tudo isso terão o benefício da abertura do mercado livre e porque o desconto no fio reduzirá ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, o governo não tem força política para sustentar a pressão do setor das renováveis e da grande indústria.”
Também está na mira um novo critério para concessão de incentivos à autoprodução por equiparação, modelo em que a empresa se torna sócia de uma usina e deixa de pagar parte dos encargos setoriais, repassados aos demais consumidores. A MP exige, para novos projetos, uma demanda mínima de 30 MW médios e participação societária com direito a voto nas geradoras. A mudança provocou uma corrida por registros no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para garantir o enquadramento dentro do prazo de 60 dias estipulado.
Governo não tem força política para sustentar a pressão das renováveis e da grande indústria” — Edvaldo Santana
As mudanças causaram apreensão entre empresas que afirmam ter estruturado seus projetos sob as regras anteriores. A gestora Newave Capital e a siderúrgica Gerdau, por exemplo, inauguraram no início de junho o Complexo Solar Arinos, em Minas Gerais, que recebeu até R$ 1,5 bilhão em aportes. Elder Rapachi, diretor executivo da Gerdau Next, conta que a empresa investiu cerca de R$ 500 milhões no capital social da companhia, garantindo 40% da geração da usina. A expectativa, segundo ele, é manter o desconto no fio durante toda a vigência da autorização.
“Esse é um pipeline para até 30 anos e, quando a gente faz toda a modelagem financeira, é preciso respeitar a regra do jogo dos tributos”, afirma. “Imagine uma mudança dessas na modelagem financeira. Nos preocupa essas mudanças de regras depois que nos comprometemos a fazer um investimento de R$ 1,5 bilhão como a Newave fez em Arinos (…). Deveria valer a regra de quando fizemos as contratações”, diz.
Gilberto Feldman, CEO da Engeform Energia, conta que as margens dos projetos renováveis estão tão espremidas que as empresas só conseguem viabilizar projetos via autoprodução. Ele reconhece que o excesso de subsídios é justamente o que tem causado as distorções, como cortes de energia pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) por falta de demanda.
“O governo está deixando que a autoprodução ocorra para os grandes consumidores de energia para atrair data centers e projetos de hidrogênio verde. Neste caso, o subsídio faz sentido, já que isso pode causar um resultado positivo em toda a cadeia”, diz Feldman. “Por outro lado, o fim do desconto no fio deve gerar prejuízos bilionários tanto para os geradores quanto para a indústria.”
Nos cálculos da Envol Energia, consultoria especializada no setor, consumidores em alta tensão podem ter aumento de até 20% no custo global da energia até 2038 sem o desconto. Para Alexandre Viana, fundador da empresa, o país enfrenta um dilema entre priorizar a eficiência econômica ou promover justiça social por meio do uso dos recursos setoriais escassos.
O especialista discorda da ideia de que o desconto no fio seja um direito adquirido, mas reconhece que a mudança representa uma quebra de expectativa para investidores que estruturaram projetos com base nas regras anteriores.
Empresas reclamam de insegurança jurídica e risco regulatório e preveem uma onda de judicialização. A pressão já levou o governo a sinalizar abertura ao diálogo. O Ministério de Minas e Energia (MME) admitiu que poderá negociar um período de transição para o fim do desconto no fio. “Podemos conversar com o setor para adotar um período que o mercado entenda como razoável”, disse Fernando Colli, secretário-executivo adjunto da pasta na semana passada, no Enase, evento promovido pelo CanalEnergia.
O diretor da Aneel, Fernando Mosna, relator do processo do orçamento da CDE, compreende que o impacto declarado da MP 1300 pelo MME de R$ 3,6 bilhões torna necessário revisar o orçamento de 2025 para acomodar as novas regras da tarifa social, que passam a valer a partir de julho. Mosna inclusive solicitou reavaliação técnica sobre o impacto fiscal das mudanças e alerta para possíveis cenários caso a MP perca validade ou seja alterada no Congresso.