Quinta-feira, 7 de Agosto de 2025

Energia solar transforma economia local

 A fruticultura irrigada de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), separadas pelo rio São Francisco, incorpora atributos além da qualidade e apreciado sabor da manga, da uva e do melão exportados de lá para o mundo. A presença cada vez maior de placas fotovoltaicas nas fazendas indica a transição para uma economia de baixo carbono e menor risco hídrico. Mais competitivas pelo menor custo da eletricidade, as superfrutas ilustram um novo perfil socioeconômico do semiárido nordestino, marcado por melhores indicadores sociais e pelo potencial de investimentos em cadeias produtivas que buscam fontes emergentes de energia no contexto das mudanças climáticas. 

 O Nordeste está na liderança da geração centralizada solar por meio de usinas de grande porte, com 53,09% do total do país em termos de potência instalada, à frente do Sudeste (45,88%). Desde 2021, a região recebeu R$ 30 bilhões de investimentos no segmento. “Incentivos de Estados e municípios e maior acesso a financiamento têm sido determinantes”, afirma Talita Porto, diretora técnico-regulatória da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). 

 Há previsão de mais R$ 60 bilhões em novas usinas solares já licitadas para iniciar obras, mas a expansão depende de investimentos em infraestrutura elétrica, como redes de transmissão. “Hoje a situação [da sobrecarga no sistema] é crítica e tem obrigado cortes que em maio atingiram 32% da geração e impactam a relação dos empreendimentos com os bancos”, adverte Porto. 

 Os investimentos na fonte solar proporcionaram 204 mil empregos no Nordeste, em cinco anos, com reflexos no desenvolvimento local, somando R$ 3,4 bilhões em impostos. “Há o desafio de garantir que a receita com arrecadação retorne em benefícios à população”, reconhece Porto. 

 O município de Juazeiro, com 971,6 MW de potência instalada, desponta como o maior gerador de energia solar em usinas conectadas à rede elétrica no Nordeste. Alta incidência de sol, disponibilidade de áreas planas baratas, capacidade de escoamento e infraestrutura de estradas e aeroporto são fatores favoráveis. “No semiárido, a natureza é cruel para a agricultura longe dos rios, mas é complementar para a energia solar”, observa Fábio Bortoluzo, diretor-geral da Atlas Renewable Energy no Brasil, presente há dez anos na região. Com 187 MW, o projeto Jacarandá, que em 2021 marcou a entrada de grandes empreendimentos de fontes renováveis no mercado livre de energia, atende o consumo da fábrica da Dow Chemical em Aratu (BA). 

 A companhia promove treinamento de mulheres para trabalhos antes atribuídos a homens, como na eletromecânica. “Qualificação de mão de obra e as queimadas frequentes, que impactam a operação, são os desafios”, afirma Dianne Desan, gerente da regional da Solar Bahia Minas, da Engie Brasil. A empresa de energia adquiriu o projeto Juazeiro Solar junto à Atlas, com área de 350 hectares e capacidade de 120 MW. São 475 mil módulos solares, estrutura que compartilha a paisagem da caatinga com comunidades tradicionais, alvos de iniciativas de educação ambiental. Atualmente, a companhia investe R$ 3,3 bilhões na construção do Conjunto Fotovoltaico Assú Sol (RN), que terá 752 MW, uma das maiores usinas solares da América Latina. 

 Em Juazeiro, o complexo Solar Futura I, com investimentos de R$ 3,2 bilhões da Eneva, empregou 3 mil trabalhadores ao longo da obra e deverá receber mais dois parques para somar um total de 2,3 GW no projeto. Com 1,4 milhão de placas solares, a geração no sertão nordestino é vendida no mercado livre de energia para clientes industriais de grande porte, como White Martins, Vallourec, Liasa e Sicbras. “O município tem ambiente bastante propício, tanto técnica quanto economicamente, e se consolida como polo da transição energética no Nordeste”, analisa Miguel Fiúza, diretor de operações da regional litoral da Eneva. 

 De acordo com Adeon Pinto, pesquisador da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina, há alta absorção de ex-alunos pela atual demanda de serviços na instalação e manutenção de sistemas solares. “Áreas improdutivas devido ao regime de chuvas e próximas a redes de transmissão acomodam essa nova geração”, ressalta. 

 A universidade contribui no controle dos equipamentos contra danos e falhas, com uso de drones e inteligência artificial – além da avaliação de desempenho, como ocorre na usina solar flutuante instalada pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) no reservatório de Sobradinho (BA). Com 1 MW, o sistema resulta de pesquisas do Centro de Referência em Energia Solar, mantido pelo grupo em Petrolina. 

 À beira do São Francisco, é possível degustar vinho produzido a partir de uvas cultivadas com uso da nova energia. Com faturamento de cerca de R$ 2 bilhões em 2024, o polo de fruticultura de Petrolina e Juazeiro retrata o movimento de demanda na geração solar distribuída – ou seja, produzida por painéis fotovoltaicos nas residências, comércio e fazendas. A potência instalada (236,8 mil KW) é hoje 80% superior à registrada em 2023 nesses municípios, com menor dependência de hidrelétricas em cenários de escassez de água. 

 Linhas de crédito tornam o negócio extremamente atrativo”  — Paulo Bories 

 “Conforme o planejamento da irrigação, a economia pode ser de até 90% na conta de energia”, diz Paulo Bories, CEO da Viking, empresa local de instalações solares com mais de mil clientes. Ao custo da energia convencional a R$ 1,10 por KWh, o investimento de consumidores de porte médio se paga em 20 meses. “Linhas de crédito para energia solar, com taxas reduzidas, tornam o negócio extremamente atrativo”, afirma. Paulista de Itatiba, ele chegou ao sertão nordestino há mais de 30 anos, quando, lembra, “só via miséria e seca”. 

 O quadro mudou ao longo das décadas. No semiárido, segundo o IBGE, a população em condição de pobreza diminuiu de 42,7% para 14,5% entre 2003 e 2021 – o que se deve à ampliação das políticas de transferência de renda e ao aumento real do salário mínimo. Ampliou-se a cobertura por serviços de energia elétrica e abastecimento de água, além da maior presença equipamentos públicos de saúde e educação. Por outro lado, o PIB per capita médio dos municípios do semiárido permanece em torno de 40% inferior à média nacional. 

 São 31 milhões de habitantes em 1.477 municípios. “As condições de vida melhoraram, com impactos diretos sobre a renda das famílias, mas a região segue marcada por baixa produtividade, informalidade e forte dependência fiscal”, analisa Wilson Fusco, diretor de pesquisas sociais da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Recife. “Tivemos um ciclo virtuoso de redução da pobreza sem, no entanto, um crescimento econômico robusto, com maior transformação estrutural”. 

 Há ilhas de dinamismo, como Petrolina, com PIB que cresceu 58% em dez anos – o que retrata a desigualdade regional. “Precisamos sair das exceções”, observa Fusco, atento aos impactos da transição demográfica com redução da natalidade e envelhecimento na população. “É urgente aproveitar a janela que está se fechando e não perder a chance de absorver jovens no mercado de trabalho criado pelas novas vocações econômicas da região”, adverte o pesquisador. Para fixar talentos, completa Fusco, é necessário mudar o padrão da educação e formação técnica. 

 Motocicletas substituíram o lombo do burro, a internet dinamizou a venda de produtos da agricultura familiar e já não se vê como antes famílias que andam quilômetros com baldes na cabeça para pegar água em açudes. Juazeiro e outros polos de energia renovável criam empregos e injetam arrecadação, mas é crescente o quadro de desertificação. “Sofremos impactos que não foram criados por nós, mas pelo modelo de desenvolvimento”, afirma Roselita Vitor, coordenadora-executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). A rede implantou 1,2 milhão de cisternas que armazenam água da chuva e, mais recentemente, lançou programa para instalar 1 milhão de tetos solares em comunidades do sertão. 

 “A geração centralizada em grandes usinas é contraditória com o combate às mudanças climáticas porque causa desmatamento e atinge a biodiversidade, além de interferir no modo de vida de populações locais que continuam pagando caro pela energia”, avalia a coordenadora. 

 Tecnologias sociais disseminadas nas últimas décadas para convivência com a seca no Nordeste são hoje lições para outras regiões na crise global do clima. Além da busca por modelos sustentáveis de produção, um dos desafios é restaurar a vegetação nativa da caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, reduzido à metade do tamanho original. “Baixos indicadores sociais estão associados à dependência do ecossistema natural para a população manter hábitos de vida”, pontua Joaquim Freitas, coordenador geral do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan). 

 O desmatamento em projetos de energia renovável aumentou quase dez vezes em quatro anos, segundo o MapBiomas. Na caatinga, apenas para abrir área a usinas fotovoltaicas, a perda foi de 1,5 mil hectares entre 2020 e 2023. Em cenário de pressões, como a expansão da fronteira agrícola, o passivo ambiental de áreas que precisam ser recuperadas não é pequeno, mas as soluções têm sido pontuais. “Temos uma configuração explosiva de fragilidade socioeconômica e mudanças climáticas que tornam regiões progressivamente mais secas junto ao uso inadequado do solo”, adverte Freitas. 

 A expectativa é transformar a reconstrução do bioma em vetor de desenvolvimento. “A visão é menos preservacionista e mais econômica, como atividade que precisa ser impulsionada como as demais cadeias produtivas”, enfatiza Ana Cláudia Destefani, à frente da Rede para a Restauração da Caatinga (ReCaa). Com 190 membros, a rede tem meta de recuperar 250 mil hectares até 2030, além de 1,4 milhão de sistemas agroflorestais e práticas regenerativas, criando 1,8 milhão de empregos. 

 

 

Compartilhe: