A urgência da modernização da infraestrutura elétrica
Valor Econômico - Por Humberto Barbato e Cyro Boccuzzi - 11/10/2021

 O Brasil atravessa uma nova crise hidrenergética, que demanda profundas transformações dos sistemas de energia elétrica. Se por um lado a matriz de geração está mais diversificada e o sistema de transmissão mais robusto em relação à crise de 2001, a necessidade de utilização de energia elétrica hoje é muito maior, o que torna urgente a modernização dessa infraestrutura. 

 As soluções para as recorrentes crises são de curto prazo - despacho de usinas térmicas fora da ordem de mérito, crescimento na importação de energia, restrições ao uso da água e interrupção de hidrovias - e acabam por onerar os consumidores. A Abinee tem contribuído com o Ministério de Minas e Energia apresentando medidas para contornar a situação, como a implementação massiva da tarifa branca, armazenamento de eletricidade e ações de eficiência energética. Entretanto, o que de fato precisamos é atacar as causas estruturais do problema. 

Socorros ao setor dariam para implantar por 3 vezes programa de redes inteligentes em todo o território nacional

 Em 2020, a Aneel viabilizou um socorro financeiro de cerca de R$ 15 bilhões às empresas distribuidoras, em decorrência da redução de suas receitas durante a pandemia. A desaceleração econômica com a queda do consumo deveria permitir uma sobra de energia e sustentabilidade dos reservatórios, o que não ocorreu. Este socorro foi a quinta iniciativa dos últimos 25 anos para equilibrar as contas do setor, totalizando mais de R$ 412 bilhões no período. 

 Todo este dispêndio seria suficiente para implantar por três vezes um programa completo de redes inteligentes em todo o território nacional, incluindo sistemas de automação e telemedição de todos os consumidores, com integração em larga escala de recursos distribuídos de energia. 

 O modelo do setor dá sinais claros de esgotamento desde 2012, quando a Medida Provisória 579, que renovou concessões das usinas hidrelétricas e objetivava a redução nos preços da energia, contrariou as regras até então estabelecidas e provocou o desajuste deste mercado. Em 2017, para resgatar a confiança e participação dos agentes na formulação das políticas, o governo lançou a Consulta Pública 33, como proposição de um modelo para reforma do setor de energia elétrica. 

 Em 2019, o atual governo buscou dar continuidade à CP 33 sob o título de “modernização do setor elétrico brasileiro”. Porém, ao contrário do que se pressupõe, não traz previsão concreta de investimentos em novas tecnologias para renovação da infraestrutura, concentrando-se apenas em regras de mercado e eliminação de subsídios. 

 Para que a efetiva modernização do setor ocorra são necessários investimentos fundamentais como a implementação de um sistema de medição inteligente. Vários países já estão implantando a segunda geração de medidores e de tarifas inteligentes, enquanto o Brasil segue apenas com uma única opção tarifária, por consumo, em 99% dos consumidores. Essa infraestrutura permitiria a adoção da tarifa binômia na baixa tensão, largamente utilizada no mundo, além de programas de gestão de demanda e implantação massiva da tarifa branca. Nesse último caso, após 8 anos de estudo e 3 de implementação, esse modelo tarifário foi adotado por apenas 57 mil consumidores em um universo de mais de 87 milhões, sem benefício sistêmico. 

 Da mesma forma, os sistemas de gerenciamento e controle, bem como de armazenamento de energia contribuiriam para a expansão da geração eólica e da solar, fontes intermitentes, no suprimento de base. A modernização possibilitaria ainda o aprofundamento das ações de eficiência energética, com o uso de tecnologias para melhor controle das cargas e redução das perdas técnicas. 

 O Brasil tem postergado as mudanças tecnológicas que muitos países já implementaram. Um exemplo disso é Projeto de Lei 232, originado no Senado, e discutido na Câmara sob o número 414, ainda sem prazo para votação. 

 Há também no debate acerca da modernização do setor elétrico três dogmas que precisam ser superados. O primeiro deles é “quem vai pagar a conta?”. O Brasil tem adiado a transformação sob esse argumento e delegado as mudanças às próprias empresas de energia. Estas, entretanto, são ainda remuneradas por modelos regulatórios obsoletos, que não estimulam a renovação de ativos tradicionais pelas novas tecnologias com segurança de reconhecimento dos investimentos. Na prática, o consumidor de energia e o contribuinte brasileiro já vem pagando uma conta de país rico, diante dos elevados impostos e encargos, dos “socorros periódicos” e dos subsídios recorrentes, sem investimentos necessários para a modernização. 

 Outro dogma diz respeito à noção de que o Brasil já possui a matriz elétrica mais renovável do mundo e por isso não faz sentido ter políticas públicas de descarbonização. Os defensores deste dogma se esquecem que a expansão, principalmente, pelas usinas eólicas e solar dependem de comportamento dos ventos e do sol, e, portanto, não são controláveis. Por isso, a orquestração de seu funcionamento seguro depende de sistemas avançados de gerenciamento e controle, por meio de ferramentas de tempo real do lado da oferta e da demanda. 

 O terceiro dogma é que a regulação deve assegurar a modicidade tarifária, que é priorizada pelos consumidores. Mais do que modicidade, a sociedade, na verdade, deseja que os preços sejam previsíveis no longo prazo e que o consumidor de energia tenha opções de suprimento, por meio de tarifas e serviços que melhor atendam às suas necessidades. 

 A pandemia fortaleceu a transformação das residências em locais multiuso, ampliando a dependência por eletricidade e conectividade. A digitalização, portanto, é um caminho sem volta, permitindo o acesso da população a tecnologias que promovam eficiência energética, previsibilidade de preços, opções de suprimento de energia, tarifas e serviços, além do melhor enfrentamento das mudanças climáticas. 

 Nesse sentido, a definição de uma política pública estruturada para a modernização efetiva da infraestrutura de transmissão e distribuição de eletricidade no Brasil é prioritária e urgente. 

Humberto Barbato é presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).

Cyro Vicente Boccuzzi é consultor e sócio diretor da ECOEE.